miércoles, 29 de abril de 2020

Uma Sinfonia de Palavras: Uma Jornada entre a Melodia e a Etimologia




Embora o Brasil seja um país muito grande e variado, alguns elementos culturais são encontrados de norte a sul. Quem nunca se divertiu dançando ao som de um acordeão? Ou será sanfona? Gaita? Afinal de contas, que nomes são esses? Será que todos se referem ao mesmo instrumento musical? Qual é a relação desses termos com a língua?

Hoje vamos, através da música, analisar a transformação orgânica da linguagem popular e como uma palavra adquire novos significados através do uso das comparações.

Antes de iniciar nossa análise, refresquemos alguns termos técnicos. A linguística é a disciplina que estuda a linguagem humana em todos as suas formas e manifestações. Dentro da linguística histórica, encontramos a etimologia, que é o estudo formal da origem das palavras. Conhecer a origem e a evolução das palavras ao longo do tempo nos permite entender as línguas em maior profundidade e facilitar nossos processos de aprendizagem e, por conseguinte, melhorar nossas habilidades de comunicação.


Tomemos como exemplo a seguinte situação: se um encanador precisasse consertar sua cozinha e notasse que a peça do encanamento tem forma de fole, ele provavelmente diria que essa peça é sanfonada. Além do mais, é muito provável que você já tenha visto um ônibus sanfonado em alguma cidade do Brasil, ou um varal sanfonado na casa de alguém.


A origem da palavra sanfona é, como se pode imaginar, musical. Sinfonia, que em grego significava “qualidade daquilo que soa junto” (ou “consonância”), virou sanfonia no português, para depois transformar-se em sanfona e finalmente ser associada ao acordeão. (Veremos que, hoje em dia, ela é também usada para descrever a forma do fole do acordeão.)

Para entendermos a origem e relação entre essas expressões e instrumentos, precisamos voltar ao século X, no período da Idade Média, quando a sanfona ou viela-de-roda, originalmente chamada sinfonia, foi inventada.

A primeira forma dela de que se tem registro histórico é o organistro. O organistro era um instrumento relativamente comprido, tocado em conjunto por duas pessoas: um homem operava a manivela e o outro, o teclado. Os organistros eram comumente usados no culto cristão medieval. Eles têm uma ou mais cordas drone (ou pedal), que tocam uma nota constantemente. Possuem, também, uma corda com teclado que faz a melodia. Por tocar mais de um som ao mesmo tempo, o instrumento era chamado, então, de sinfonia.


Com o tempo, porém, os organistros perderam a popularidade. Durante a Alta Idade Média, os órgãos (de tubos) começaram a substituí-los nos cultos sagrados.


A partir de então, o organistro gradualmente diminuiu de tamanho. Ele virou um instrumento mais acessível, que podia ser tocado por uma pessoa apenas. Assim, ele passou a ser chamado de sanfona e começou a ser usado mais na música secular, para fins recreativos ou de entretenimento.


Curiosamente, em inglês, esse instrumento foi e é chamado de uma forma muito peculiar: hurdy-gurdy. Ninguém sabe por que a sanfona é conhecida dessa maneira na língua inglesa. Provavelmente, é um nome pejorativo que surgiu por causa da associação negativa que o instrumento adquiriu depois de se tornar comum entre os pobres e, especialmente, os músicos mendicantes.
                   
Outro instrumento que usa a mesma técnica da sanfona é a gaita-de-fole, que também tem um ou mais drones. A gaita-de-fole, embora muito popular desde a Idade Média em toda a Europa, é rapidamente associada, hoje, à música escocesa.


Pulamos alguns séculos e começamos a nos aproximar dos tempos atuais.

No século XIX, na Alemanha, o acordeão foi inventado. Em alemão, o instrumento se chama Akkordeon. Ele recebeu esse nome porque é um instrumento polifônico, isto é, capaz de emitir vários sons ao mesmo tempo. Na música, esse fenômeno é chamado de acorde (em alemão, Akkord).



O acordeão foi trazido ao Brasil pelos imigrantes europeus dos últimos séculos. É ele o responsável pelo som característico de alguns dos estilos brasileiros mais populares, como o forró nordestino e o fandango sulista.

Nas regiões Nordeste e Centro-Oeste do país, quando o acordeão chegou, ele foi chamado de sanfona, apesar de este ser um instrumento diferente. O nome ficou. Por que isso aconteceu? Uma possível explicação é que o acordeão tenha lembrado os músicos do som da sanfona da Idade Média.

Por outro lado, no Sul do Brasil, foi chamado de gaita. Talvez, tenha sido por causa da gaita-de-foles, já que tanto o acordeão quanto a gaita-de-foles usam foles e produzem mais de um som.

Ironicamente, em outras regiões do Brasil, como no Nordeste, a palavra gaita é usada para se referir à harmônica, que é da mesma família do acordeão.



A palavra gaita vem do gótico gaits (bode), pois o material usado para fazer o fole do instrumento era o couro de bode. No Nordeste, além de sanfona, o acordeão também é chamado de pé-de-bode.

Em Portugal, até hoje, o nome sanfona faz referência, exclusivamente, à sanfona de origem medieval (o chamado hurdy-gurdy em inglês).

Outros instrumentos da família do acordeão são a concertina, o harmônio e a melódica. É curioso observar que todos esses instrumentos têm nomes relacionados a conceitos muito importantes da música: sinfonia, harmonia, melodia, concerto, acorde...

Em conclusão, podemos notar como a língua, a cultura popular e a nossa maneira de perceber o mundo estão intimamente relacionadas.

Como exemplo, analisamos como hoje, no Brasil, a palavra sinfonia é imediatamente associada à forma dobrável de qualquer objeto, por causa da associação subconsciente que os falantes da língua portuguesa fazem com o fole do acordeão.

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